Sobre os Recentes Eventos do Paraguai
Julho de 2012
No último dia 22 de junho, o então Presidente do
Paraguai, Fernando Lugo, foi
destituído de seu cargo através de um processo “relâmpago” de impeachment
votado pelo Congresso por maioria absoluta. A acusação: “mal desempenho de suas
funções”. Apesar de o processo ter ocorrido sem desrespeitar formalmente a Constituição do país, as
suas características mostram a forma com a qual a burguesia paraguaia conduz
seu Estado. Os eventos se desenrolaram em cerca de 30 horas, enquanto um
impeachment costuma levar no mínimo algumas semanas para que haja tempo para que
a defesa se prepare e também para que sejam apresentadas provas contra o
acusado. Diversos movimentos sociais e mesmo governos de países vizinhos se
opuseram ao processo por considerarem sua condução sumária.
Lugo foi eleito Presidente em 2008 através da coalizão
Aliança Patriótica para a Mudança (APC em espanhol). A APC foi uma frente
de oposição com o objetivo de derrotar o Partido
Colorado, que dirigiu uma sangrenta ditadura
militar por mais de três décadas (1954-89) e ainda hoje é a maior legenda do
país, tendo ficado por mais de 60 anos no poder. O principal partido da
APC, e que indicou o vice de Lugo, foi o PLRA
(Partido Liberal Radical Autêntico), segunda maior legenda do Paraguai e também
representante da burguesia. Também integravam a coalizão, com menor poder de
decisão e de forma politicamente subordinada, alguns movimentos e partidos
camponeses e proletários – praticantes da colaboração de classes.
Durante sua campanha eleitoral Lugo prometeu realizar
uma ampla reforma agrária. A distribuição da terra é uma tarefa urgente tendo
em vista que apenas 2% da população paraguaia é proprietária de 85% de todas as
terras do país [1]. Devido à alta
concentração fundiária, essa foi uma promessa recebida com grande entusiasmo
pelos “carperos” (como se chamam os sem-terra paraguaios), que travam uma luta
encarniçada com os latifundiários através da ocupação de terras e criação de
assentamentos.
Mas durante seus aproximados três anos e meio de
duração, o governo burguês de Lugo não realizou avanços significativos de
reforma agrária, abandonando suas promessas logo nas primeiras semanas de
governo. Nenhum resultado diferente poderia ser esperado se levarmos em conta
que Lugo, apesar de eleito pelo voto dos carperos e trabalhadores urbanos, foi
financiado e coligou-se com seus inimigos ― os partidos dos latifundiários e
empresários ― e dependeu deles todo o tempo.
Assim, o governo de Lugo foi marcado por um recorrente
discurso que visava obter a simpatia da classe trabalhadora e dos camponeses
pobres, ao mesmo tempo em que na realidade governava para satisfazer os
interesses da burguesia nacional e imperialista. E além de tal discurso
demagógico e populesco de Lugo, também cumpriu um papel central na manutenção
da ordem burguesa a sua proximidade com setores dos movimentos sociais, cooptando
as lideranças traidoras como forma de convencer as massas de carperos,
trabalhadores e a camponeses para não irem contra seu governo e conterem suas
lutas. Esta dinâmica serviu bem à burguesia paraguaia durante certo tempo.
Com
a radicalização das lutas pela terra este ano (e o consequente aumento da
influência de grupos guerrilheiros como o Exército do Povo Paraguaio) essa
política mostrou seus limites e os principais setores da burguesia viram
necessidade de uma postura mais enérgica. Em 15 de junho deste ano, uma fazenda
adquirida ilegalmente por um ex-senador colorado e ocupada por cerca de 150
carperos foi palco de um massacre que terminou na morte de 11 trabalhadores
sem-terra, assassinados pelas forças policiais
enviadas ao local. Tal desenlace foi resultado de um confronto armado, que
demonstra o crescimento da radicalização e da preparação militar dos carperos.
6 policiais caíram mortos de um total de 300 homens enviados para reprimir a
ocupação [2].
Carperos armados de facões e porretes em Ñacunday, onde enfrentam sojeiros brasiguaios e seus jagunços (Michel Filho / Agêncio O Globo) |
Com a intensificação dos conflitos por terras, a coalizão de
Lugo entrou em crise e a oposição de direita a seu governo se fortaleceu. O
primeiro resultado dessa querela entre setores da burguesia paraguaia foi a
queda do Ministro de Interior de Lugo, alvo de críticas pela oposição de direita,
e que foi substituído por um membro do Partido Colorado, Rubén Candia, figura
mais propensa a empregar com ainda mais vigor os métodos repressivos.
Posteriormente, sob a forte pressão da luta de classes no interior do país, o
PLRA abandonou a coalizão de Lugo e somou forças no Congresso ao Partido
Colorado.
A oposição burguesa do Partido Colorado em aliança com o PLRA
decidiu ir além e fazer do próprio Lugo seu alvo. Como juntos os dois partidos
passaram a controlar a maioria absoluta no Congresso, não foi tarefa difícil
remover da presidência o extremamente isolado Lugo e abrir caminho para o
controle do Executivo através do vice do PLRA, Frederico Franco. Um processo de
impeachment foi aprovando na Câmara dos Deputados no dia 21 de junho e a destituição
de Lugo deu-se através de uma votação no Senado no dia seguinte, por uma
vantagem de 39 votos contra 4.
Um documento da Embaixada dos Estados Unidos no Paraguai,
datado de 2009 e vazado pelo WikiLeaks, deixa claro que esse plano já vinha há
muito sendo considerado, e esperava-se o momento propício para remover Lugo do
poder, abrindo assim caminho para que o PLRA assumisse a presidência e os
colorados indicassem o novo vice a partir da sua supremacia no Congresso [3].
Tendo em vista o programa político e a história dos
partidos envolvidos nessa sórdida jogada, não é surpreendente que o
“impeachment” tenha sido realizado às pressas. Uma vez aprovada a acusação na
Câmara, o “tribunal” composto por senadores foi estabelecido e o processo
julgado em menos de dois dias. A pressa se explica principalmente pelo temor
dos congressistas em dar tempo para que os apoiadores de Lugo nos movimentos
sociais tomassem as ruas em protestos, e principalmente que caravanas de
carperos fossem até a capital defendê-lo.
A
caracterização do processo e a posição revolucionária
A queda de Lugo e a ascensão de Franco à presidência foi diferente dos golpes de Estado que aconteceram no Haiti em 2004 ou em Honduras em 2009. Claro que coberturas “legais” são sempre utilizadas por agentes da burguesia para disfarçar suas medidas ilegais ou antidemocráticas. Mas o centro do que comumente se considera um golpe de Estado, ou seja, um atentado armado contra a democracia burguesa a partir da mobilização dos aparatos repressivos (e que por vezes coloca estes no centro do poder), esteve em grande parte ausente nessa situação.
A queda de Lugo e a ascensão de Franco à presidência foi diferente dos golpes de Estado que aconteceram no Haiti em 2004 ou em Honduras em 2009. Claro que coberturas “legais” são sempre utilizadas por agentes da burguesia para disfarçar suas medidas ilegais ou antidemocráticas. Mas o centro do que comumente se considera um golpe de Estado, ou seja, um atentado armado contra a democracia burguesa a partir da mobilização dos aparatos repressivos (e que por vezes coloca estes no centro do poder), esteve em grande parte ausente nessa situação.
Alguns grupos na esquerda tem caracterizado o processo
como um “golpe de Estado” puro e simples. Outros estão sendo mais cuidadosos e
utilizando termos como “golpe branco” ou “golpe institucional”. Nomenclaturas à
parte é importante atentarmos para os limites da própria democracia burguesa do
Paraguai, que deu respaldo para que Franco e o PLRA subissem ao poder embasados
na própria Constituição do país [4].
Mas, diferente dos comentaristas liberais, não
pautamos nossas posições pelo “respeito à lei”. Como marxistas, enxergamos a
lei como produto da luta de classes, criada para ordenar a dominação da
burguesia sobre o proletariado e também estabelecer algumas regras entre as
próprias disputas internas da burguesia. Temos clareza de que a própria
Constituição paraguaia permitiu a destituição sumária de Lugo porque a
intensidade dos conflitos políticos historicamente existentes nesse país exigiu
da burguesia se armar com esse tipo de instrumento legal.
Atirador de elite protege sede do Congresso durante a votação do impeachment (Cesar Olmedo/AP) |
Assim como esses setores exigiram a nomeação de um
reacionário do Partido Colorado para o cargo de Ministro do Interior com o
objetivo de reprimir com maior firmeza as ocupações de terra, os mesmos também
resolveram cortar os laços entre governo e lideranças pelegas dos movimentos
sociais, com a clara intenção de deixar de lado a cooptação política e
priorizar o método dos cassetetes e fuzis. Basta reparamos na justificativa
para a destituição de Lugo: este não estava “cumprindo seu dever” na contenção
dos sem-terra. Certamente esses senhores do PLRA e do Partido Colorado encaram
que o erro de Lugo e de seu ex-ministro do Interior em Curuguaty não foi o de ter reprimido e assassinado os carperos em luta,
mas sim de ter demorado em fazer isso e ter dado tempo para que estes se
fortalecessem e criassem condições para resistir aos policiais, chegando a
heroicamente derrubar alguns deles.
Portanto, nos opomos firmemente à manobra desses
senhores do PLRA, do Partido Colorado e companhia e à subida de Franco à Presidência.
Isso não significa, entretanto, que apoiamos politicamente Lugo e seus aliados.
Pelo contrário, foi o próprio governo Lugo que, pelo seu projeto de conciliação
de classes e seus ataques à classe trabalhadora e aos camponeses pobres,
permitiu o fortalecimento daqueles que o tiraram do poder e garantiu as
condições do seu triunfo. Lembramos que o próprio Lugo aceitou a entrada do
Partido Colorado em seu gabinete na importante posição de Ministro do Interior.
Também não vamos nos esquecer de que o massacre de Curuguaty ocorreu não sob o
governo de Franco, mas sim sob o governo do próprio Lugo.
Nesse sentido, a
melhor maneira prática de impedir a jogada suja do PLRA e de seus aliados sem
comprometer a independência de classe do proletariado, era atacando a
propriedade privada, através da intensificação das invasões de terra no campo e
da construção de greves políticas nas cidades. Essa medida não só enfraqueceria
a oposição burguesa à Lugo e poderia fazê-la recuar em sua investida como
também enfraqueceria o próprio Lugo e seu projeto de manutenção do capitalismo,
cimentando o caminho para uma verdadeira situação revolucionária que
desembocasse em um governo direto do proletariado em aliança com seus irmãos
camponeses.
Lugo governou para
e com a burguesia e tem sangue nas
suas mãos assim como todos os outros defensores dos latifundiários,
independente das suas diferenças em termos de que métodos utilizar para
preservar o capitalismo e enfraquecer a luta pela terra. Para nós, Lugo deveria
ter sido tirado do poder, mas não pelos latifundiários reacionários que ele
buscou proteger, e sim pelos carperos e proletários que ele trabalhou para
oprimir e explorar. Frente a exigências ou ilusões de que Lugo deveria retornar
ao poder, devemos dizer abertamente que ele não merece a mínima confiança ou apoio
da classe trabalhadora e dos camponeses pobres!
Diante da destituição de Fernando Lugo, a tarefa de
construir um enfrentamento feroz com a burguesia reacionária está em dia.
Protestos contra o “golpe palaciano” do PLRA têm ocorrido em diversas regiões
do país. E mesmo que em grande parte os manifestantes não estejam simplesmente
se opondo à manobra palaciana, mas também apoiando Lugo politicamente e
exigindo seu retorno à presidência, cabe aos revolucionários intervirem neles
com seu programa próprio. É fundamental disputar a consciência dos companheiros
em luta para romperem politicamente com Lugo e adotarem um programa classista e
revolucionário.
Um dos vários protestos que têm ocorrido contra a posse de Franco e a destituição de Lugo (Jorge Adorno/Reuters) |
Com o crescimento desses protestos, pode ser que os
representantes do Partido Colorado e seus novos velhos amigos do PLRA apelem
para a violência brutal que foi desnecessária em um primeiro momento, devido à
falta de resistência por parte de Lugo e seus apoiadores. É fundamental,
portanto, educar os trabalhadores no caminho da autodefesa e utilizar o calor
das mobilizações para construir milícias populares e impedir novos Curuguaty
perpetrados pela burguesia reacionária.
O eixo central da luta contra a manobra da direita
paraguaia deve ser a independência de classe dos trabalhadores e a ação direta,
em aliança com os camponeses pobres. As tarefas do proletariado paraguaio
frente à atual situação são ocupar terras no campo, realizar greves políticas
nas cidades contra o novo governo e construir autodefesas contra possíveis ataques
da burguesia, rejeitando toda e qualquer confiança ou apoio a Lugo, assim como
a mediação de organismos burgueses internacionais, como a UNASUL.
Cabe aos trabalhadores nos outros países adotar uma
atitude internacionalista com relação aos seus irmãos de classe. Devemos tomar
as ruas e realizar greves de apoio aos proletários e carperos paraguaios em sua
luta contra o governo de Franco ou de qualquer outro peão da burguesia. Desde o
Brasil, devemos rechaçar firmemente o posicionamento dos proprietários “brasiguaios”
(de apoio a Franco) e auxiliar nossos irmãos de classe no Paraguai a
responderem esses senhores com a expropriação imediata de suas terras.
Ao realizar tais ações de solidariedade ao mesmo tempo
em que também se colocam contra as próprias burguesias e seus governos, as greves,
protestos e outras ações proletárias mostrarão o verdadeiro caminho
internacionalista dos trabalhadores contra as classes dominantes que os
exploram e oprimem.
NOTAS
[1] Números fornecidos no artigo Os mortos de Curuguaty e o julgamento político de Lugo:
[2] Números fornecidos em matéria da Carta Maior:
[3] O documento pode ser acessado através do seguinte
link, contendo tradução em português:
[4] A Constituição paraguaia prevê a possibilidade de um
impeachment, porém não estabelece um regimento para como ele deve ser
realizado. Dessa forma, após o Congresso aprovar o início do julgamento, coube
a ele próprio decidir as regras com as quais proceder.